quinta-feira, 10 de abril de 2008

Carne, osso e sentimento

Eu sou um pássaro que voa sozinho, longe de casa, sem abrigo e enfrentando uma ventania. Sinto que estou habitada por sentimentos, como se não houvesse mais nada, nem carne, nem sangue, nada. Falta espaço!

Descobri que não estou imune, que sinto, que choro, que estou viva. A tranqüilidade é só aparente. Mas descobri também que sentir não é fraqueza, mas a única forma de ser honesto consigo.

A última gota não existe. Resolvi acolher os sentimentos, deixar que eles transitem, mostrem quem eu sou. Vivo um momento charneira, do mesmo jeito que Josso explica num livro que venho estudando no mestrado, uma experiência que marca o início de uma trajetória diferente, um divisor de águas.

Quero viver esse momento de forma consciente, quero escolher o caminho e correr todos os riscos.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

O Raio





Um conto de Ítalo Calvino,
do livro Um General na Biblioteca






Aconteceu-me uma vez, num cruzamento, no meio da multidão, no vaivém. Parei, pisquei os olhos: não entendia nada. Nada, rigorosamente nada: não entendia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E comecei a rir.

Para mim, o estranho naquele momento foi que eu não tivesse percebido isso antes. E tivesse até então aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas, monumentos, essas coisas tão afastadas do significado do mundo, como se houvesse uma necessidade, uma coerência que ligasse umas às outras.

Então o riso morreu em minha garganta, corei de vergonha. Gesticulei, para chamar a atenção dos passantes e – Parem um momento! – gritei – tem algo estranho! Está tudo errado! Fazemos coisas absurdas! Este não pode ser o caminho certo! Onde vamos acabar?

As pessoas pararam ao meu redor, me examinavam, curiosas. Eu continuava ali no meio, gesticulava, ansioso para me explicar, torna-las participantes do raio que me iluminara de repente: e ficava quieto. Quieto, porque no momento em que levantei os braços e abri a boca a grande revelação foi como que engolida e as palavras saíram de mim assim, de chofre.

- E daí? – perguntaram as pessoas. – O que o senhor quer dizer? Está tudo no lugar. Está tudo andando como deve andar. Cada coisa é conseqüência da outra. Cada coisa está vinculada às outras. Não vemos nada de absurdo ou de injustificado!

E ali fiquei, perdido, porque diante dos meus olhos tudo voltara ao seu devido lugar e tudo me parecia natural, semáforos, monumentos, fardas, arranha-céus, trilhos de trem, mendigos, passeatas; e no entanto não me sentia tranqüilo, mas atormentado.

- Desculpem – respondi. – Talvez eu é que tenha me enganado. Tive a impressão. Mas está tudo no lugar. Desculpem. – E me afastei entre seus olhares severos. Mas, mesmo agora, toda vez (freqüentemente) que me acontece não entender alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada, para me apoderar dessa sabedoria diferente, encontrada e perdida no mesmo instante.